quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
Portugal entrou no século XXI muito mais bem preparado do que no século XX. Em 1900, já não havia analfabetos na Finlândia – mas em 2008 já não há nen
Imagine-se um país europeu atrasado e pobre, onde é considerado normal crianças e adultos andarem descalços. Onde a mortalidade infantil é 10 vezes superior à média europeia e a taxa de analfabetismo de 30 por cento, onde o pequeno-almoço de muitas das suas crianças, especialmente nas zonas rurais, inclui uma dieta à base de vinho. Onde a violência doméstica é aceite e onde, entre marido e mulher, nem a polícia mete a colher. Um país deselectrificado num quarto do seu território e onde apenas metade da população tem acesso a água canalizada e rede de esgotos. Um país sem vias de comunicação dignas desse nome, a perder os seus melhores filhos numa guerra colonial e para a emigração. Um país onde ninguém viaja, sem acesso a informação livre, sem acesso a produtos de consumo variados e onde as tendências e as modas chegam com décadas de atraso. Um país sem liberdade de expressão, nem de associação, nem de manifestação, nem de greve. Um país divorciado da modernidade, cultural e técnica, de agricultura feudal, cheio de carroças pelas suas estradas poeirentas, onde a mendicidade é uma forma de vida. Onde os seus melhores artistas estão proibidos, reprimidos, cercados ou presos, asfixiado por uma moralidade hipócrita, e onde a bruxa é a única alternativa ao médico que não existe.
Visitemos esse mesmo país 30 ou 40 anos mais tarde. Um país cruzado por autoestradas modernas, com infra-estruturas decentes, com serviços de saúde que funcionam e instituições permanentemente escrutinadas por uma imprensa livre e uma opinião pública emergente. Onde o equilíbrio de poderes previne abusos. Pobre, ainda, porque parco em recursos naturais, mas incomparavelmente mais rico do que antes, com um nível de vida a anos-luz da indigência do passado. Com um parque automóvel moderno, esgotos e água canalizada em praticamente 100% do território e com os populosos bairros de barracas de antigamente praticamente erradicados. Substituídos por guettos, nalguns casos, cheio de desequilíbrios entre um interior desertificado e um litoral caoticamente povoado – mas onde já não se morre de fome ou de doença e onde muitas das assimetrias aparecem como preço a pagar pelo desenvolvimento súbito e descontrolado. Com uma escolaridade obrigatória mínima e com indicadores sociais próximos da média europeia e esperança de vida equivalente. Com os aviões cheios dos seus nacionais em viagens de férias para os melhores destinos de praia ou neve. Com os mesmos contrastes de antes, mas onde a pobreza e a miséria nada tem já a ver com o terceiro-mundismo de antigamente. Um país que consome, almoça fora, diverte-se à noite e com os parques de estacionamento das universidades pejados de carros, o segundo ou terceiro carro da família. Mal ou bem, um pais universalmente escolarizado, com quadros jovens qualificados, a sair das universidades, talvez mais incultos do que antes, sem saberem o nome do primeiro rei de Portugal ou do último Presidente da República do Estado Novo, sem nunca terem lido um livro e a dar erros de ortografia, mas profundamente mais especializados e preparados para o mercado de emprego, sensíveis às novas tecnologias, e conhecedores dos nomes dos vencedores dos Óscares dos últimos dez anos – a referência de conhecimentos, do que interessa ou não interessa saber, evolui... Um país sem problemas de separatismo, sem conflitos sociais graves nem diferenças étnicas, com uma das mais baixas taxas de criminalidade do Continente. Um país onde se protesta, se vota, se discute, se discute até de mais. Com figuras culturais de referência mundial, protagonistas e êxitos desportivos muito superiores a países de dimensão semelhante e quadros políticos nos mais altos cargos das instituições internacionais. Capaz de organizar mega-eventos mundiais muito melhor do que outros e com meios humanos e físicos para isso. Um país com excelente clima e gastronomia, procurado por milhões de turistas e segunda pátria de novas gerações de imigrantes.
Pois é neste «segundo» país que um surge um documento de uma elite que diz existir um «mal-estar» na sociedade, capaz de originar «uma crise social de contornos difíceis de prever». Mas a redundância vaga e não fundamentada em exemplos prossegue: há «sinais da degradação da qualidade cívica» - mas estamos a falar de um país onde a intervenção cívica não existia até há 30 anos!. «Sente-se hoje um mal-estar difuso que alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional» - isto um país que, sempre a viver na miséria, resistiu, quase 900 anos, a todas as tentativas, internas e externas, de deterioração da sua coesão nacional!.
A SEDES parece não conhecer a História, nem ver para além da espuma dos dias. E os portugueses não têm memória nem fazem comparações com o que tão recentemente viveram e eram. O diagnóstico da SEDES não está errado, mas não é pedagógico nem inovador. Limita-se a analisar conjunturas, mas vê a realidade da «caverna de Platão». Analisa o momento, dando voz a sensações gerais, sem reflectir comparativamente os momentos históricos. Ora, a falta de memória, essa sim, é a única verdadeira ameaça àquilo a que se chama «coesão nacional». Portugal entrou no século XXI muito mais bem preparado do que no sécul XX. Em 1900, já não havia analfabetos na Finlândia – mas em 2008 já não há nenhum jovem português com menos de 20 anos que não saiba navegar na Internet. Em 30 anos, Portugal fez um percurso de aproximação à Europa que outros demoraram séculos a fazer. Continua na cauda – mas arrancou com dez voltas de atraso. Tem ao lado um desleal termo de comparação: a Espanha. Espanha que é grande de mais para nós, e mesmo assim não nos assimilou, e que teve uma ditadura que – ao contrário da portuguesa – a desenvolveu economicamente. Que não teve guerra colonial (embora tenha problemas graves de separatismo e terrorismo).
O mal do país é discutir o acessório em vez de escalpelizar o essencial. É um país onde os problemas da Educação parecem resumir-se às reivindicações dos professores, que, por muito legítimas, apenas lhes interessam a eles – quando o que nos interessa a todos é a forma como a nova vaga de alunos está a ser preparada. Onde os problemas da Saúde se resumem ao fecho de urgências, quando o que interessa saber é se cientificamente, os nossos hospitais oferecem ou não o mesmo nível de prestação de cuidados que os seus congéneres europeus. Onde os problemas da Justiça parecem resumir-se aos seus atrasos – quando a questão está na facilidade ou dificuldade de acesso por parte dos cidadãos. Onde o problema do funcionamento da sociedade se resume à produção de leis (quase sempre perfeitíssimas!) – quando o fundamental é a ajuizar da exequibilidade da sua aplicação (e o caso ASAE é paradigmático: a legislação era óptima mas quando alguém a aplica cai o Carmo e a Trindade...)
O problema do país não está só no desemprego, mas na chantagem psicológica permanente nos locais de trabalho. Não está na pequena criminalidade da rua, mas na violência doméstica escondida e transversal a todas as classes sociais, que mantém mulheres reféns e torturadas em tantos lares nacionais com total desrespeito das autoridades pelos direitos humanos. O problema não está na avaliação de professores – mas na exigência que se deve aplicar aos alunos e às famílias. O problema não está na decisão política ou na incompetência dos eleitos, nem sequer na sua cupidez – mas na indigência da investigação policial sobre a corrupção e na falta de vontade das elites em intervir civicamente. O problema não está na estrada com buracos ou na necessidade de mais uma piscina municipal que ficará às moscas – mas na degradação do património histórico, que devia ser uma prioridade para qualquer governo civilizado, porque os homens passam, as obras ficam. O problema não está no combate aos incêndios – mas na sua prevenção. O problema não está entre escolher entre a Ota e Alcochete – mas no atraso de décadas de um aeroporto absolutamente necessário. O problema não está na invasão espanhola mas na desconfiança, sobretudo sindical, mas também burocrática, relativamente ao investimento estrangeiro que nos daria emprego, qualificação e largueza de vistas. O problema não está na coesão nacional mas nos complexos nacionais.
O mal-estar de que, redundantemente, fala a SEDES, cujos responsáveis ocupam ou ocuparam os mais altos cargos de liderança no País, existe – mas o derrotista documento, que vem baralhar em vez de apontar caminhos, não contribui para o erradicar.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário