terça-feira, 25 de março de 2008
A traição do Afeganistão
O AFEGANISTÃO é o país mais belo do Mundo. É um país que não interessa aos portugueses, apesar de um soldado português ter morrido em Cabul. Ao contrário da guerra do Iraque, que faz agora cinco anos, a guerra do Afeganistão passou despercebida e as pessoas não sabem se são contra ou a favor da manutenção das tropas do ISAF e da NATO, que incluem os nossos militares. Ouvem falar em talibãs, uma contagem de tantos mortos para tantas baixas ocidentais, em esconderijos de Osama bin Laden, em precipícios e armadilhas, em Al Qaeda e fronteiras porosas com o Paquistão, em atentados suicidas e vítimas. Ninguém quer saber das burkas (que continuam) e dos direitos das mulheres, da fome e da miséria, da perseguição dos hazaras pelos pashtun, dos emigrantes ou dos retornados, de Massoud ou de Karzai. Da vida em Cabul, Herat ou Mazar-i-Sharif. Nem das colheitas de ópio, que mais uma vez vão bater recordes de milhões de toneladas. Sem o ópio e a heroína, que alimentam a guerrilha e a economia, que destroem o frágil tecido social que resta ao cabo de quase 40 anos de guerra e de privação, e que roem os países do tráfico, sobretudo o Paquistão e o Irão, o Afeganistão deixou de ser notícia. Foi devorado pelo Iraque que monopoliza os fundos e o interesse americano.
Terra fechada sem mar, o Afeganistão permanece um país misterioso que derrota os seus invasores, como o inverno russo. A pequena guerra do príncipe Harry na província de Helmand, contada em "flashes" de filme de aventuras, trouxe o Afeganistão para os olhos ocidentais como ele sempre foi trazido, um cenário desolado de desertos e montanhas, grutas e poeira, arbustos anões e personagens exóticas. Num dos "flashes" do príncipe feliz com a adrenalina escutava-se um diálogo entre ele e um afegão tratado com o desdém colonial e paternalista com que os ingleses tratavam os indígenas. Os ingleses sabem por que estão no Afeganistão. Desde o século XIX, do Great Game e das guerras anglo-afegãs, do confronto entre o império britânico e o império russo, que os ingleses sabem e estudam as campanhas e a derrota nos manuais militares e recitam os versos de Kipling sobre os mortos que jazem nas planícies do Afeganistão. Ao contrário dos americanos, os ingleses têm ali um passado, têm muitos ossos enterrados naquele pó, e seres com memória têm contas a ajustar. Ninguém, na Grã-Bretanha, discute a presença militar no Afeganistão nem o seu custo em soldados. É para eles natural, como para o príncipe, estar ali e morrer por ali.
Devemos a Tony Blair esta herança, a de acharmos que, como os ingleses, basta estar ali para justificar estarmos ali, nós europeus, sem que a intervenção militar seja completada por objectivos políticos, diplomáticos, sociais ou económicos. Sem que haja um plano para ajudar o Afeganistão, ou um orçamento para ajudar o Afeganistão. Sem que se questione a duvidosa competência política do manequim Karzai, protegido por mercenários americanos pagos a peso de ouro, sem que se questione a verdade afegã, a de um país regido por tribos, bandos, códigos de honra antiquíssimos e disputas religiosas. Os pashtun, sunitas, desprezam os hazaras, xiitas, que consideram servos menores. Os tajiques (como o clã e os herdeiros de Massoud) disputam-se com os pashtun no governo e na corrupção, e os usbeques, a norte, disputam-se com todos ao mesmo tempo e continuam a ser regidos pelo famigerado general Dostum. Uma sociedade tribal que viveu em guerra e só sabe viver em guerra, afeiçoada à crueldade e ao orgulho, e a uma medida de sofrimento e sacrifício que teríamos dificuldade em entender no ocidente. Nenhuma potência a conseguiu "civilizar" ou domesticar. Junte-se a esta mistura venenosa a acção dos árabes e dos mujahidin de bin Laden, dos senhores da guerra, dos contrabandistas, dos cultivadores de ópio, dos traficantes de armas, dos serviços secretos iranianos e paquistaneses, e dos espiões do costume mais as agências americanas do costume, CIA, FBI, DEA, etc., e percebe-se uma parte do problema. Ninguém sabe, hoje, quem são os talibãs. O MI5 tentou conversações ultra-secretas com eles para ver se percebia. O talibã já não é o órfão de guerra analfabeto, nascido em cativeiro. O talib educado pelas madrassas do Paquistão e obrigado a decorar o Corão numa língua desconhecida, em estado hipnótico. Doutrinados pelos wahabitas e os deobandi, armado pelos sauditas, paquistaneses, ingleses e americanos durante a ocupação russa, os talibãs ficaram reduzidos a uma identidade religiosa, o Islão.
Os russos também desistiram do Afeganistão, que lhes traz à boca o azedo da derrota, e preferem dedicar-se ao terrorismo doméstico, preocupando-se com os efeitos da heroína que atravessa o rio Amu Darya, o Oxus de Alexandre, num vaivém. O romance de Khaled Hosseini, O Menino de Cabul, descreve a atracção do país e da sua luz, da beleza selvagem da terra e da gente, com os rios límpidos onde dormem esqueletos de tanques russos, os desertos de vento e o perfil puro da neve no Indocuche. Os afegãos, com a sua mistura antiga de raças asiáticas, são um povo de ficção e feições esculpidas pelo tempo. Para além da fábula e da tragédia estão um país traído que ninguém sabe ajudar.
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